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Caruru de Cosme e Damião: tradição baiana segue viva nos restaurantes de Salvador

Setembro na Bahia tem mais cheiro de dendê e memória afetiva. Quem cresceu aqui sabe: a festa de São Cosme e Damião não passa em branco. A tradição de oferecer o caruru, esse prato cheio de simbologia feito com quiabo, azeite de dendê, castanha e camarão seco ainda resiste, mesmo que de formas diferentes das que nossos avós conheceram.

O antropólogo Vivaldo da Costa Lima, em seu livro Cosme e Damião – O Culto aos Santos Gêmeos no Brasil e na África, lembra que o caruru é mais que comida: é rito, é cultura, é forma de devoção. Ele ressalta como a tradição nasceu da fusão entre a liturgia católica e as comidas de azeite do candomblé, criando um costume que atravessou gerações dentro e fora dos terreiros.

Lembro que o chamado caruru de preceito tinha um ritual: primeiro as sete crianças eram servidas e só depois os adultos podiam se aproximar da mesa. Era uma festa de fartura, onde o gesto de partilhar significava bênção e proteção dos santos gêmeos.

Mas os tempos mudaram. Hoje quase não vemos mais crianças correndo para comer o caruru ou pegar os doces. A tradição se reinventa cada vez mais em festas e restaurantes que fazem questão de manter o prato no cardápio.

Este ano, provei três versões e cada uma mostrou um jeito próprio de celebrar.

Dona Mariquita Casa de Veraneio

Crédito: Tereza Carvalho/Provei e Aprovei

No Dona Mariquita Casa de Veraneio, a tradição ganha contornos de fé e solidariedade. Durante todo o mês de setembro, o restaurante serve o caruru completo. E no dia 27, nenhuma outra opção aparece no cardápio: todo mundo só come caruru, e a renda do prato é revertida para o Lar Vida, instituição que acolhe pessoas com deficiência encaminhadas pelo Juizado da Infância e Juventude.

A chef Leila Carreiro explica que, desde o início do século XX, o costume é marcado pela mistura do sincretismo com o catolicismo: “Existe o dia de Cosme e Damião na Igreja Católica, celebrado em 26 de setembro, mas na Bahia virou tradição servir o caruru no dia 27.”

Ela lembra que, no candomblé, a comida votiva faz a comunicação com os orixás: o feijão preto é de Omolu, o feijão fradinho de Oxum, o acarajé de Iansã, o xinxim de galinha de Oxum e o acaçá servido em algumas casas é de Oxalá.
“Essa mistura atravessou os terreiros e chegou às casas baianas, mesmo daquelas famílias que não eram do candomblé.”

Assim, no Dona Mariquita Casa de Veraneio, o caruru não é apenas tradição: é também memória cultural, respeito religioso e gesto solidário.

Casa de Tereza

Crédito: Tereza Carvalho/Provei e Aprovei

No Casa de Tereza, a data é simbólica: o restaurante completa 13 anos justamente no dia de Cosme e Damião. Devota dos santos gêmeos, a chef Tereza Paim serve um caruru completo para convidados no dia 27 e ainda distribui o prato para os alunos da Escola Hercília Moreira, no Rio Vermelho. Para quem quiser experimentar em outros dias, o caruru aparece no cardápio como prato Ibejis.
“Vamos todos comer e saudar Cosme & Damião. Feliz pelos 13 anos de conquistas e alegrias do Casa de Tereza. O clima é de celebração”, vibra a chef.

Ori

Crédito: Tereza Carvalho/Provei e Aprovei

Já no restaurante Ori, o chef Fabrício Lemos faz questão de colocar o prato em cena. Lá, o caruru é servido toda última sexta-feira do mês como forma de fortalecer a cultura gastronômica local. Em setembro, aparece em todas as sextas e no dia 27. No lugar do tradicional xinxim de galinha, entra o peixe, em sintonia com a proposta do restaurante.
“Servir peixe tem a ver com nosso conceito. Uso muitos frutos do mar e isso conversa mais com a linguagem da casa”, explica Fabrício.

Além do restaurante, ele também mantém a tradição em casa, onde prepara o caruru no dia 27 para convidados em um encontro íntimo, reforçando os laços de afeto e devoção que cercam o prato. Ele não esconde o entusiasmo:
“Eu amo caruru, adoro essa composição e essa soma de muitos ingredientes que você consegue sentir o gosto de cada coisa.”

Entre passado e presente

A pergunta que fica é: será que o caruru de preceito ainda encontra espaço fora dos terreiros? Ou será que virou um ritual restrito, guardado na memória da cidade e revivido de outras formas?

O certo é que, seja no terreiro, nas casas de famílias ou no cardápio de um restaurante, o caruru continua sendo um elo entre passado e presente. Um prato que conta a história de um povo, mistura fé e sabor e lembra que partilhar ainda é a maior forma de celebrar.

Jornalista e curadora de experiências, apresento lugares, sabores e histórias que merecem ser vivenciadas e compartilhadas. Conteúdo com propósito e autenticidade.

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